Uma noite em 67: Um filme da música popularReprodução
Paquito
De Salvador (BA)
Festival de música popular no Brasil, hoje, é feito concurso de miss: não conquista mais as multidões nem move o país. Mas, no final dos anos sessenta, era bem diferente, pois foi a maneira de uma nova e talentosa geração da canção brasileira se mostrar para um público ampliado pelo alcance da televisão. E o terceiro festival da Tv Record, focado no documentário Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, foi o mais importante.
Só pra se ter uma ideia, em dezembro de 66, Chico Buarque e Geraldo Vandré, que dividiram o primeiro lugar do festival anterior com, respectivamente, A banda e Disparada - e representavam duas vertentes, até então, da pós-bossa nova, a música urbana também voltada para o que se chamava "bossa velha", e a música de origem rural, pretensamente mais "popular" - entrevistaram, para a revista Manchete, o ídolo jovem Roberto Carlos, representante máximo e inconteste do iê iê iê, no topo das paradas, desde a explosão de Quero que vá tudo pro inferno, de 1965.
Entre outras coisas, Chico elogia Roberto, revelando que João Gilberto, mestre dos dois, o considera "musical". O mais interessante, no entanto, é que Vandré e Chico tentam convencer Roberto a gravar um disco com repertório de "música brasileira", como se não fosse brasileira a música de Roberto Carlos. O Rei não contesta, responde que teria de pensar, pois música para ele não era só um negócio etc. Para os três e, segundo o senso comum daqueles dias, a música de Roberto Carlos e da Jovem Guarda não era nacional, apesar de cantada em português por um brasileiro, e do inequívoco respaldo popular.
A partir do festival de 67, aquela diferença fora abolida, por conta das participações de Caetano e Gil, que, com Alegria, alegria e Domingo no parque, deram início à estética da inclusão tropicalista, com ênfase, naquele instante, no universo pop. Começo do fim da inocência, inserção nos movimentos da contemporaneidade, constatação de que a música popular era, sim, também um negócio: nada mais seria como antes. Milton Nascimento e o Clube da Esquina, Novos Baianos, Raul Seixas, Luís Melodia, só para citar alguns, pareciam apenas estar esperando a abertura dos caminhos, o que aconteceria mais cedo ou mais tarde. Mas o pioneirismo e a coragem foram dos tropicalistas, fato digerido e sabido por quem se interessa por música no Brasil.
O mérito do documentário é, primeiro, deixar as apresentações das canções na íntegra, que, com o som melhor das salas de cinemas, dá uma ideia mais precisa do clima vivo e tenso daqueles instantes, o contrário, por exemplo, de quando se assiste às imagens no YouTube, onde as imagens e os sons, de quarenta anos atrás, ficam esmaecidos.
Na sala do cinema, a gente parece fazer parte do público do festival, se emociona com a efusão discreta de Edu Lobo e Marília Medalha, intérpretes da vencedora Ponteio, de Edu e Capinam, sente a tensão da apresentação de Sérgio Ricardo, com a vantagem de saber que ele vai jogar o violão na plateia - o que aumenta o suspense - e, guiados pelo depoimento atual de Nelson Mota, temos a noção mais clara de como Caetano entra sob as vaias, mas as faz arrefecer, aplaudido no final da apresentação.
Os depoimentos atuais, portanto dialogam com as imagens do passado, e entre si, como na fala do pessoal do MPB-4, que recanta a Roda viva de Chico, com um som melhor que o do festival, e explicita a estrutura do arranjo, com o arremate final do próprio compositor, assumindo, de maneira bem-humorada, os ardis para tornar a canção mais sedutora para o público do evento.
O documentário põe o foco nos cinco primeiros colocados, Edu, Gil, Chico, Caetano e Roberto, cujos depoimentos atuais, comparados aos prestados no próprio festival, fazem ver como já se prenunciavam o poder de síntese de Caetano, a emotividade de Gil e o senso de humor de Chico, um artista que soube, à sua maneira peculiar, retomar o diálogo com os tropicalistas, com resultados felizes, como o clássico disco gravado com Caetano. A se notar um Roberto menos preservado, mais opinativo e, como sempre, grande cantor, em um palco sem retorno. Tudo no filme concorre para nos colocar diante do clima da época, e para por em pauta a situação da música atual.
Abolidas algumas fronteiras, outras persistem. Ainda existe a divisão entre uma música mais intelectualizada, que os jornalistas especializados glorificam, e outra mais popular, que o povo adora. Sintomas da diversidade de um país continental? Pobreza? Riqueza? Teria a música popular alternativa, por exemplo, perdido a capacidade de desenhar um Brasil cada vez mais complexo? Ou o país é que não mais se enxerga na música popular alternativa? A música popular é popular? Em que medida as cartas marcadas de um mercado consolidado afetam o desenvolvimento da música? Naquela noite em 67, o festival parecia unir o país. Quarenta anos depois, a música brasileira tornou-se gigante, dispersa e pulverizada, apesar do otimismo dos arautos de uma nova era das comunicações.
Como adendo, sugiro a leitura do meu artigo: Johnny Alf, a brisa e festivais , mais transistórico, publicado aqui na Terra Magazine, sobre Eu e a brisa, concorrente que não levou nenhum prêmio no mesmo festival, mas é uma canção tão linda quanto as classificadas.