sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Nas raízes da primeira dama, um caminho complexo desde a escravatura

The New York Times
Rachel L. Swarns e Jodi Kantor
em Washington

Em 1850, um idoso da Carolina do Sul pegou a caneta na mão e dolorosamente dividiu suas posses. Entre as rocas, foices, toalhas de mesa e cabeças de gado que ele deixou aos seus herdeiros distantes havia uma escrava de 6 anos, avaliada em US$ 475.

No testamento, ela era descrita simplesmente como a "menina negra Melvinia". Após sua morte, ela foi arrancada dos locais e pessoas que conhecia e enviada para a Geórgia. Enquanto ainda era adolescente, um homem branco foi pai de seu primeiro filho, sob circunstâncias perdidas com a passagem do tempo.
  • Obama Campaign 2008/The New York Times

    Fraser Robinson III posa para a foto com sua mulher, Marian, e os filhos Craig e Michelle,
    hoje primeira-dama dos EUA, Michelle Obama



Nos anais da escravatura americana, esta história dura não seria digna de nota salvo por uma razão: esta união, consumada dois anos antes da guerra civil, marcou as origens de uma linhagem familiar que se estenderia da Geórgia rural para Birmingham, Alabama, Chicago e, finalmente, até a Casa Branca.

Melvinia Shields, a jovem escrava analfabeta, e o homem branco desconhecido que a engravidou são pais do tataravô de Michelle Obama, a primeira-dama.

Consideradas por muitos como símbolo poderoso do avanço dos negros, Obama tinha apenas uma vaga noção de seus ancestrais, dizem seus assessores e parentes. Durante a campanha presidencial, a família descobriu um tataravô paterno, um antigo escravo da Carolina do Sul, mas o resto das raízes de Obama continuava desconhecido.

A história recém descoberta dos ancestrais maternos de Obama -a mãe escrava, o pai branco e seu filho Dolphus T. Shields- pela primeira vez conecta plenamente a primeira primeira-dama afro-americana à escravidão, traçando sua viagem de cinco gerações dos grilhões para a primeira fileira da presidência. As descobertas -feitas pela genealogista Megan Smolenyak e pelo "New York Times"- substanciam o que Obama chamou de rumores antigos de família sobre um antepassado branco.

Enquanto a origem bi-racial do presidente Barack Obama atraiu atenção considerável, o pedigree da sua mulher, que inclui ramos de índios americanos, ressalta a complicada história de miscigenação, algumas vezes nascida de violência ou coerção, existente nas linhas de muitos afro-americanos. Obama e sua família se recusaram a tecer comentários para este artigo, em parte por causa da natureza pessoal do assunto, segundo seus assessores.

"Ela representa como evoluímos e quem somos", disse Edward Ball, historiador que descobriu que tinha parentes negros -descendentes de seus ancestrais brancos proprietários de escravos- quando pesquisou para seu livro de memórias "Slaves in the Family" (escravos na família).

"Não somos tribos separadas de latinos e brancos e negros nos EUA", disse Ball. "Somos misturados há gerações."

Os contornos da história da família de Obama saíram de registros de testamentos do século 19, licenças de casamento amareladas, fotografias apagadas e as memórias de idosas que se lembravam da família. Das dezenas de parentes identificados, foi a menina escrava que mais chamou a atenção, disse Smolenyak.

"De todas as raízes de Michelle, Melvinia estava gritando para ser encontrada", disse ela.

Quando seu proprietário, David Patterson, morreu em 1852, Melvinia se viu em uma fazenda de 80 alqueires com novos patrões, a filha e o genro de Patterson, Christianne e Henry Shields. Era um mundo estranho e pouco familiar.

Na Carolina do Sul, ela morava em uma terra com 21 escravos. Na Geórgia, era uma de apenas três escravos na propriedade, que atualmente faz parte de uma subdivisão na cidade de Rex, perto de Atlanta.

Se Melvinia trabalhava dentro da casa ou nos campos, não faltava de trabalho: trigo, milho, batata doce e algodão para plantar e colher, três cavalos, cinco vacas, 17 porcos e 20 carneiros para cuidar, de acordo com uma pesquisa de 1860.

É difícil dizer quem pode ter engravidado Melvinia, que deu a luz a Dolphus em torno de 1859, com cerca de 15 anos. Na época, Henry Shields estava com quase 50 anos e tinha quatro filhos de 19 a 24 anos, mas outros homens talvez também passassem tempo na fazenda.

"Ninguém ficaria surpreso em saber do alto número de estupros e da exploração sexual que ocorria na escravidão; era uma experiência diária. Contudo, descobrimos que alguns desses relacionamentos eram muito complexos", disse Jason A. Gillmer, professor de direito da Universidade Wesleyan no Texas, que pesquisou as ligações entre proprietários de escravos e escravos.
  • Birmingham Public Library/The New York Times

    Casa de Dolphus Shields, em Birmingham, no Alabama. A árvore genealógica da família de Obama destaca a complicada mistura racial entre muitos americanos com origem africana

Em 1870, três dos quatro filhos de Melvinia, inclusive Dolphus, foram listados no censo como mulatos. Um nasceu quatro anos após a emancipação, sugerindo que a ligação que produziu esses filhos continuou após a escravidão. Ela deu aos seus filhos o nome de Shields, talvez sugerindo sua paternidade ou simplesmente pelo costume de ex-escravos de adotarem o nome de seus patrões.

Mesmo após ter sido libertada, Melvinia continuou no local, trabalhando na fazenda adjacente à de Charles Shields, um dos filhos de Henry.

Mas em algum momento de seus 30 ou 40 anos, Melvinia conseguiu partir e se reunir com ex-escravos de sua infância na fazenda de Patterson: Mariah e Bolus Easley, que se estabeleceram em Bartow Country com Melvinia, perto da fronteira do Alabama. Dolphus se casou com uma das filhas de Easley, Alice, que é tataravó de Michelle Obama.

Uma comunidade "despedaçada, de alguma forma, estava se reunindo", disse Smolenyak do grupo em Bartow County.

Melvinia parece ter vivido com o legado não resolvido de sua infância em escravidão. Seu certificado de óbito de 1938 assinado por um parente diz "não sei" no espaço para os nomes dos pais, sugerindo que Melvinia talvez nunca tenha sabido.

Em algum momento antes de 1888, Dolphus e Alice Shields continuaram a migração, dirigindo-se para Birmingham, uma cidade com linha de trem, ferro, minas e fábricas, que atraía ex-escravos e seus filhos do Sul.

Dolphus Shields tinha 30 e poucos anos e pele muito clara -alguns diziam que parecia branco- era carpinteiro, sabia ler e escrever, frequentava a igreja e progredia em uma cidade que se industrializava. Em 1900, ele era proprietário de sua casa, segundo o censo. Em 1911, ele abriu sua própria marcenaria e empresa de afiar ferramentas.

Ele foi co-fundador da Igreja Batista Trinity, foi ativo no movimento de direitos civis, supervisionava escolas dominicais na Trinity e na First Ebenezer, que ainda existem hoje, e na Igreja Bastista Missionária Regular.

"Foi reitor dos diáconos em Birmingham. Era um homem sério, era um executivo", disse Helen Heath, 88, que frequentava a mesma igreja.

Sua família ingressou na classe trabalhadora, morando em um bairro segregado de negros em dificuldades, proprietários ou locatários. Em sua casa, não se podia fumar, praguejar, mascar chiclete, usar batom ou calças para as mulheres e absolutamente não se podia ouvir blues no rádio, que ele reservava para os cânticos de igreja, lembra-se Bobbie Holt, 73, que foi criada pelos Shields e sua quarta esposa, Lucy. Ela disse que a família ia à igreja "todas as noites da semana, parecia".

Ele carregava mentas para as crianças do bairro, disse Holt, e contava histórias engraçadas sobre suas aventuras de menino. Mas a família passava por dificuldades.

Sua primeira mulher, Alice Easley Shields, mudou-se depois que eles se separaram, trabalhando como costureira e empregada doméstica e dois de seus filhos tiveram problemas.

Robert Lee Shields, um inventor cujas patentes para melhorar as operações de lavagem a seco estão na biblioteca de Birmingham, terminou trabalhando como rapaz de manutenção, disse Holt.

Dolphus Shields não falava de suas origens.

"Chegamos a um ponto no qual não queríamos que ninguém soubesse que conhecemos escravos; as pessoas não queriam falar sobre isso", disse Heath, que assumiu que ele tinha parentes brancos porque a cor de sua pele e a textura de seu cabelo "diziam que era quase branco".

Em uma época em que negros se desesperavam com a intransigência e a violência dos brancos que os proibiam de votar, os excluíam da maior parte dos trabalhos, dos restaurantes e de terem propriedades em bairros brancos, Dolphus Shields servia como raro elo entre as comunidades profundamente divididas.

Sua marcenaria ficava na parte branca da cidade e ele se misturava facilmente e frequentemente com brancos. "Eles vinham à sua loja, sentavam e conversavam", disse Holt.

Dolphus Shields acreditava que as relações raciais iam melhorar. "Algum dia vai melhorar", dizia, conta Holt.

Quando morreu aos 91 anos, em 1950, a mudança estava a caminho.

No dia 9 de junho de 1959, quando seu obituário apareceu na página da frente do "Birmingham World", o jornal negro também dizia "Tribunal Proíbe Segregação em Lanchonetes e em Educação Superior". A Suprema Corte tinha proibido acomodações separadas em vagões de trem e em universidades no Texas e Oklahoma.

No norte, seu neto, um pintor chamado Purnell Shields, avô de Obama, estava buscando maiores oportunidades em Chicago com sua família.

Na medida em que avançaram, os descendentes perderam contato com o passado. Hoje, Dolphus Shields está em um cemitério negro negligenciado, onde o gramado cresce na altura do joelho e muitos túmulos estão destruídos.

Holt, assistente de enfermagem aposentada, disse que ele apareceu para ela em um sonho no mês passado. Ela procurou a fotografia dele, jamais imaginando que logo ia descobrir que Dolphus Shields era tataravô da primeira dama.

"Meu Deus", disse Holt, ao saber da notícia. "Sempre o admirei, mas nunca teria imaginado algo assim. Benza a Deus, progredimos muito."

Tradução: Deborah Weinberg

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